Dia 20 de Novembro, dia da consciência negra, dia para refletirmos sobre a luta contra o racismo e igualdade social e nossa homenageada é Virgínia Leone Bicudo.
Mas me conta…Você já ouviu falar sobre ela?
Virginia foi pioneira da Psicanálise no Brasil, primeira mulher não médica a exercer a Psicanálise em nosso País e a realizar análise pessoal na América Latina.
Mas antes de tornar-se Psicanalista, Virginia forma-se socióloga em uma turma onde havia ela e mais 7 homens apenas, mulher forte e guerreira, neta de escravos, Virgínia procura a sociologia para compreender questões sociais, como a desigualdade que presenciava desde criança, mas em sua busca por resposta, sente que falta algo, em sua entrevista para Anna Veronica Mautner em 1998 diz que não foi por acaso que procurou a Psicanálise, mas sim para lidar com a expectativa de rejeição (palavras dela). A maioria dos teóricos procuraram nos estudos respostas para suas dores, com Virginia não foi diferente, procurou a Sociologia como resposta a tudo que havia presenciado e a Psicanálise para lidar com o que encontrou.
Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo,o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história.
(Virgínia Bicudo, entrevista a Anna Verônica Mautner, 1998)
Mais uma de tantas curiosidade sobre Virgínia: foi a primeira pessoa a publicar uma dissertação sobre questões raciais, para os interessados e curiosos de plantão, segue o título da publicação: “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”.
Utilizou de sua bagagem acadêmica e de sua vivência para dar visibilidade para tantos assuntos importantes, que se não fosse sua coragem e start, fico pensando… Quando essas questões seriam abordadas?
Falando sobre abordar assuntos, Virgínia levou a Psicanálise aos jornais da época, nós amantes da Psicanálise sabemos o que é isso, não é mesmo? Queremos falar para o mundo todo sobre essa incrível teoria, Virgínia não só quis, como foi lá e fez. Os textos eram tão interessantes que ocupavam a capa do jornal.
Quando aparecia nos jornais, suas fotos passavam por um processo de “branqueamento”, onde a cor da sua pele era modificada, dessa forma seus escritos e pensamentos eram mais aceitos aos leitores, por vir então de uma mulher branca.
Em 1995 foi para Londres estudar Psicanálise na Sociedade Britânica de Psicanálise curso na clínica Tavistock, nessa época teve contato com teóricos importantes, como Melanie Klein, Bion, Winnicott, entre outros… Tornou-se amiga de Bion e de sua esposa na época e recebeu muito acolhimento de Melanie Klein, que a convidou para o famoso chá das cinco em nada mais nada menos que em sua casa. Em sua volta para o Brasil, traz consigo uma bagagem imensa sobre os estudos realizados em Londres e introduz o curso de Melanie Klein no Instituto de Psicanálise São Paulo, do qual foi diretora entre 1961 e 1974, além de promover a vinda de W. Bion para seminários em Brasília e São Paulo.
Sua análise pessoal, iniciou antes mesmo de todo esse percurso acerca da teoria mencionado acima, já em contato com a Psicanálise na faculdade de sociologia, manifesta seu interesse pela teoria, pelas ideias de Sigmund Freud, o que leva Virgínia a procurar por alguém que pudesse ser parceiro nesses estudos tão restritos ainda no Brasil, dessa forma chega a Durval Marcondes, Médico - Psiquiatra fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise em 1927. É a partir de Marcondes que Virgínia conhece Adelaide Koch, primeira Psicanalista a atuar na América Latina, a partir desse encontro, inicia a sua análise pessoal, sendo a primeira pessoa a usar o divã da Dra. Koch.
Eu fui a primeira pessoa que usou o divã da Dra. Koch. Mas não é pra contar isso pros outros, viu? Os médicos não vão gostar.
Estou fazendo brincadeira agora. Acontece que fui mesmo… A Doutora chegou, todo mundo com receio, com medo… E a Doutora: “Estou organizando aqui, quero ver quem quer…”. “Eu quero!” Eu sempre brinco que estreei o divã no Brasil.
(Virgínia Bicudo, entrevista a Anna Verônica Mautner, 1998)
O processo de análise pessoal não foi nada fácil para Virgínia, não no âmbito do contato com suas questões inconscientes, essas questões ficaram no divã, mas algo que Virgínia relatou e trouxe a público em 1989 no artigo intitulado “memórias e fatos”, foi sobre as dificuldades financeiras para arcar com o processo de análise pessoal, dividia o divã da Dra. Koch com homens que viviam em uma realidade financeira e social diferente da sua, pois eram médicos e devido a essa ocupação possuíam status e logo uma posição econômica privilegiada.
Na entrevista com a Dra. Koch para o contrato analítico, preocupou-me o quanto eu deveria despender para o pagamento dos honorários, os quais correspondiam a tudo o quanto eu mensalmente ganhava, na função de educadora sanitária. Assumi o compromisso imaginando: "Quando a Dra. Koch souber que pede todo meu ordenado, ela reduzirá seus honorários".
Enquanto isso não acontecia, consegui do governo um empréstimo, para o pagamento mensal da análise, durante um ano. Após um ano, recebi dois pacientes, um pobre e outro rico, o que me possibilitou continuar minha análise. (1989, p. 95)
O sobrenome de Virgínia foi pioneira e para ser pioneira, precisou ser muito corajosa também, sendo mulher negra em ambientes frequentados na época majoritariamente por homens brancos. Foi uma figura muito importante na luta diária contra o racismo.
Mas aqui ainda fica um ponto de interrogação (?) Por que nos dias atuais é raro os momentos que escutamos falar sobre essa mulher incrível, quiçá escutamos, não é mesmo? Sendo ela uma Psicanalista no qual era necessário aguardar 4 anos para uma vaga, um horário de supervisão em sua lista. Há muitos contrastes e discordâncias, pois essa mesma Psicanalista teve sua dissertação publicada apenas 65 anos depois da sua escrita, 65 anos que sua produção textual, sua ideia “não existiu”. Essa mesma mulher, apesar de ser pioneira e indispensável para a Psicanálise no Brasil, é pouco lembrada, tendo sua primeira homenagem apenas em 2010, em seu centenário de nascimento, pois o dia da sua morte nem sequer foi registrado.
Você nesse momento pode estar se perguntando: Por que nunca ouvi falar dessa grande Psicanalista? Ou se já ouviu falar dela alguma vez, pode estar se perguntando também: Por que ouvi tão pouco sobre ela, visando que a participação, a trajetória na Psicanálise no Brasil dessa mulher foi tão importante? Então nesse dia também tão importante, dia da consciência negra, convido você caro leitor(a) a pensar: Se Virgínia Leone Bicudo fez história no Brasil, por que ela continua ainda nos dias de hoje sendo pouco retratada e reconhecida?
Referências bibliográficas:
Frausino, Carlos César. Um olhar sobre Virgínia Leone Bicudo. Rev. bras. psicanálise, São Paulo, vol.54 no.3, Setembro de 2020.
Braga, Ana Paula Musatti. Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo. Revista Lacuna, artigo - 2, Dezembro de 2016.
Maio, Marcos Chor. SciELO, Dezembro 2010 . Disponível em :https://www.scielo.br/j/cpa/a/qtFBWvr3Tf8yKkn8sJ47cfw/?lang=pt#. Acesso em: 18 nov. 2023.
Abrão, Jorge Luís Ferreira. Virgínia Leone Bicudo: a trajetória de uma psicanalista brasileira. São Paulo: Arte & Ciência, 2010.
Parabéns artigo maravilhoso
Acredita que até agora não sabia nada à respeito dela? Agradeço pelo texto Stephany.
Belíssimo! Viva a Virgínia, viva o povo negro, viva a psicanálise!
Gostaria de expressar minha sincera gratidão à Psicanalista Stephany por trazer à tona o importante tema da consciência negra neste dia significativo, 20 de novembro. Sua abordagem reflexiva e comprometida em discutir questões relacionadas à valorização da cultura afrodescendente é verdadeiramente inspiradora. É fundamental reconhecer e apreciar o esforço de indivíduos que contribuem para a conscientização e o diálogo sobre temas tão relevantes. Obrigado, Psicanalista Stephany, por seu valioso trabalho.